A natureza a seus pés da praia do Magoito à praia da Samarra

Um percurso de simbiose entre a Matemática e a paisagem no Parque Natural de Sintra Cascais que percorre um antigo mar albiano-cenomaniamo. Na plataforma de S. João das Lampas entre calcários e margas intercalados com episódios magmáticos afetados por algumas fracturas e desligamentos caminhámos sob um nevoeiro matinal que envolvia o mistério da natureza e nos redescobria para os seus valores.

 


Na orla marítima que impressiona pelo seu vigor, nas arribas altas que apresentam um elevado valor florístico inseridas na Rede Natura 2000, com ocorrências naturais de geodiversidade classificadas como geossítios, são mais do que atributos para a necessidade de se trabalhar na sua proteção e de se criarem mais formas de divulgação científica e didática destes tesouros naturais.

Já o sol aquecia bem forte de manhã cedo, junto à sede da LPN, quando nos preparávamos para mais uma saída de campo inserida numa ação de formação e professores. O nosso destino aventuroso era um percurso pela zona norte litoral do Parque Natural de Sintra Cascais, com início na praia do Magoito. A expectativa era grande, sabíamos que iríamos efetuar um trajeto um pouco mais aventureiro nas arribas altas e íngremes, num cenário com uma bela paisagem e que teria a novidade de incluir a matemática às ciências naturais e geografia.


Ao chegarmos à praia do Magoito somos presenteados com uma névoa matinal. Não é que constituísse uma verdadeira surpresa conhecendo já o clima da região, mas em tão poucos quilómetros é sempre um contraste que enriquece e nos consciencializa para a diversidade climática do nosso país conferindo-lhe caraterísticas específicas de ocupação natural e humana. No entanto, aquela frescura inicial dava-nos alento para o início da nossa “expedição” da praia do Magoito até á praia da Samarra. Ela era particularmente importante não só pela sua riqueza geológica, florística e paisagística como também porque se sente ao caminhar alguma ligação a um território mais natural embora com uma ocupação humana ancestral e com alguns troços de ocupação rural/agrícola.

 

 

Praia do Magoito – praia rica em iodo de grande biodiversidade.

 

 

Inicialmente, após uma  apresentação introdutória sobre a região pelo professor destacado Jorge Fernandes e pela formadora Marta Filipe efetuou-se o percurso com auxílio de um guião previamente distribuído e onde os participantes eram convidados a realizar atividades, nomeadamente de exercícios de Matemática, identificação de líquenes e de rochas magmáticas utilizando chaves dicotómicas.  No caso dos professores esse conjunto de atividades permitem perspetivar o currículo combinando diferentes áteas disciplinares e a realização de atividades fora da sala de aula constituindo os locais visitados como laboratórios naturais de aprendizagem.

 

 

Apresentação de atividades de Matemática pela formadora Marta Filipe.

 

 

Da primeira paragem do nosso percurso observava-se o geossítio da Duna Consolidada ou paleoduna da praia do Magoito. Esta teve origem na última glaciação, quando o nível do mar era mais baixo que o atual, pelo que permitiu a deposição de areias neste local e a evolução de areia solta para a rocha de arenito. Para além da fossilização do depósito de praia apresenta uma ocupação pré-histórica.

 

 

Duna consolidada do Magoito – Laminações oblíquas que permitem determinar qual  a direção em que sopravam os ventos aquando da formação da duna.  Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Passando pelo Forte de Santa Maria e seguindo pelas arribas na antiga  plataforma de abrasão de São João das Lampa observavam-se uma grande variedade de formações geológicas com a alternância de margas, argilas, arenitos e calcários, rochas com dureza, permeabilidade e deformabilidade muito distintas e vegetação própria dos meios dunares. Do cimo da antiga plataforma eram visíveis os aspetos da ação da erosão do litoral resultante da ação das ondas nas arribas com famílias de descontinuidades, fraturas e desligamentos que apresentam erosão diferencial resultando em queda de blocos por perda de sustentação.

 

 

Abrasão marinha com queda de blocos no percurso praia do Magoito-praia da Samarra.  Fotografia de Manuela Gonçalves.

 

 

Embora o percurso não apresentasse uma vegetação exuberante devido à exposição das arribas aos ventos predominante de Noroeste e à salsugem, a vegetação evidenciava as diversas adaptações a essas condições difíceis numa zona da Rede Natura com um estatuto de valor máximo de conservação. Tanto nas rochas, solo e vegetação observavam-se diversas espécies de organismos pioneiros que têm um papel muito importante nos ecossistemas contribuindo para sua formação, estabilização e recuperação do solo para além de serem indicadores (algumas espécies epífitas) da qualidade do ar. Nesse âmbito, com recurso a chaves dicotómicas procurou-se identificar o grupo das espécies de líquenes mais comuns que se observavam na vegetação arbustiva.

 

 

Observação e Identificação de Líquenes. Fotografia de Henrique Martins.

 

 

Líquenes fruticulosos do género Ramalina evidenciando os apotécios (corpo frutífero que faz parte da fase sexuada do ciclo de vida dos fungos). Fotografia de Carlos Bico.

 

 

A nossa viagem ia prosseguindo enaltecida pela geodiversidade e biodiversidade do percurso enquanto os primeiros raios de Sol começavam a dourar a paisagem. Com passo seguro os nossos caminhantes começavam cada vez mais a progredir pelos trilhos da paisagem cársica observando o elenco florístico, os insectos polinizadores e decompositores, atravessando ribeiras e dunas consolidadas em direção á praia da Samarra.

 

 

Escaravelho de pescoço vermelho (Heliotarus ruficolis) polinizando a planta Scolimus hispânica.

 

 

Ao longo do trajeto as formações sedimentares testemunhavam episódios de avanços de nível do mar e recuos do nível do mar. A plataforma por onde caminhávamos resultava de uma ação combinada entre tectónica e de regressão marinha evidenciada pela presença dos fósseis marinhos nos calcários e do encaixe das redes hidrográficas.


Impressionados com a paisagem observávamos as camadas sedimentares da Orla Mesocenozóica Ocidental do Maciço Ibérico que de repente eram interrompidas por alguns filões magmáticos que ocorreram durante o episódio magmático correspondente ao Complexo Vulcânico de Lisboa (CVL).

 

 

Fotografia de Henrique Martins.

 

 

Percurso praia do Magoito – praia da Samarra. Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Na linha de costa recortada entre as arribas, por vezes intercalavam-se com enseadas, que correspondem a locais de deposição de materiais, provenientes da ação erosiva do mar e de sedimentos transportados pelas ribeiras que drenam para o litoral. Passamos por uma praia selvagem paradisíaca - a praia de Gerebele. Raramente visitada, a praia de Gerebele é designada como um sistema de praia encastrada (Oliveira, L. 2009) por ser condicionada estruturalmente pela tectónica sendo limitada para o interior por uma arriba com afloramentos de bancadas com predominância de materiais brandos e encaixada entre duas saliências litorais rochosas protuberantes.

 

 

Praia do Gerebele –Sistema de praia encastrada localizada numa falha de direcção NNE-SSW. Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Praia de Gerebele – Sistema de praia encastrada localizada numa falha de direcção NNE-SSW.  Fotografia de Henrique Martins.

 

 

Mas a experiência arrebatadora surgiria um pouco depois. Sensivelmente a uns 3 quilómetros da praia da Samarra apercebemo-nos de imediato que caminhávamos para uma mudança de contacto litológico. Deparávamos com um filão magmático que apresentava caraterísticas peculiares. Ao longo do percurso distinguia-se uma rocha diferente dos calcários do Cretácico estando encaixado nelas de forma concordante, daí a designação de filão camada ou soleira. Era uma imagem inédita em Portugal face à sua extensão.

 

 

Filão Camada da Lomba dos Pianos.  Fotografia de Carlos Bico.

 

 

Uns quilómetros mais a norte, entre zonas de pastagem um poucos metros para o interior, surgia a aproximação ao afloramento da Lomba dos Pianos instalado numa antiga pedreira onde são facilmente observáveis excelentes aspetos de disjunção esferoidal e colunar das rochas magmática. Trata-se de um geomonumento ao nível do afloramento, de grande interesse resultante da ação do Complexo Vulcânico De Lisboa e onde se pode desfrutar de uma bela paisagem reveladora da história geológica da região. De acordo com certos autores trata-se de uma rocha magmática do tipo traquibasalto (Ramalho, M.) ou de dolerito (Oliveira, L, 2009) sendo o filão camada (soleira) classificado como geossítio.

 

 

Chegada a Lomba dos Pianos.

 

 

No afloramento pelas colunas magmáticas assistia-se a uma aula de demonstração de escalada por parte de visitantes vindos de Espanha.

 

 

Filão camada da Lomba dos Pianos.

 

 

Filão camada da Lomba dos Pianos. Aspetos de disjunção colunar. Fotografia de  Carlos Bico.

 

 

Aspeto de Disjunção esferoidal – Lomba dos Pianos.

 

 

Com uma breve explicação de enquadramento geológico do Geossítio do Afloramento da Lomba dos Pianos e da constatação da sua importância didática e científica ficamos perplexos como se instala na sua proximidade uma lixeira.

 

 

Lomba dos Pianos. Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Depois de tentarmos classificar a rocha observável mediante a análise das suas caraterísticas mencionadas na chave dicotómica fornecida no guião fomos despertos para a existência de minerais como sejam os Zeólitos. Neste local forneceram-se os melhores espécimes com zeólitos em território nacional pelo que dada a sua relevância será necessário como medida de proteção do geossítio preservar as relações entre a rocha magmática com o encaixante. Este afloramento constitui um bom exemplo de como se poderia envolver a sociedade civil com a comunidade científica e uma oportunidade de educação ambiental ao permitir reconstituir a história da Terra, preservando o seu valor estético por forma a se evitar ameaças à sua conservação.

 

 

Zeólitos – Silicato Hidratado de Alumínio.

 

 

Zeólitos – Silicato Hidratado de Alumínio. Fotografia de Carlos Bico.

 

 

Após a passagem pela antiga pedreira da Lomba dos Pianos onde se efetuou o merecido descanso com vista para as falésias abruptas e para as formas de carsificação do litoral, era tempo de partirmos novamente com destino à praia da Samarra, mas agora por pouco tempo, pois a distância já era pequena e precisávamos de nos abastecer de energia para o almoço.


Iniciámos a descida até ao vale encaixado da ribeira da Samarra por um trilho com muita vegetação ripícola, passando por um moinho da maré privado recentemente restaurado. Até chegarmos á praia da Samarra observando as suas interessantes formações geológicas e a flora das suas arribas. No topo Sul desta praia existiu na Idade do Cobre, há cerca de 4 mil anos, o povoado de Pedranta. No lado oposto foram descobertas gravuras rupestres Proto-Históricas e uma jazida pré-histórica com cerca de 100 indivíduos.

 

 

Percurso praia do Magoito praia da Samarra. Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Praia da Samarra (chegada). Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Após a pausa do almoço, com o dia ficando mais quente, regressamos de volta em direção à praia do Magoito. Embora o percurso fosse o mesmo, as vivências, os olhares e a luz eram diferentes. Caminhávamos agora em direção a sul, avistando o monte da Lua e ao longe o ponto mais ocidental da Europa continental – o Cabo da Roca.

 

 

Percurso Praia da Samarra - praia do Magoito. Fotografia de Carlos Bico.

 

 

Percurso praia da Samarra - praia do Magoito. Fotografia de Helena Formiga.

 

 

Pelo caminho  observaram-se retalhos de uma duna semelhante à do Magoito formada há cerca de 10 000 anos e o professor destacado analisou o pH do solo.

 

 

Retalho de duna consolidada  - norte da praia do Magoito. Fotografia de Carlos Bico.

 

 

Determinação do pH do solo. Fotografia de Henrique Martins.

 

 

E chegámos após esta odisseia ao nosso destino, já quase ao entardecer. Apesar do trajecto sentimo-nos revigorantes e estranhamos quando regressamos a quantidade de banhistas e de pessoas na praia. Era como se tivéssemos regressado de um mundo quase secreto, de paisagens pouco frequentadas que exibiam um planeta com diferentes cores. Foi como regressar à história da Terra, aos seus episódios graduais e lentos onde o conhecimento pode fazer a diferença e onde as saídas de campo nos permitem ligar a um território sensibilizando para a sua proteção e valorização.

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