Abutres: marcos da cultura pop ou o eterno fado do mau agoiro?

Fotografia: As quatro espécies de abutres que ocorrem em Portugal (grifo, abutre-preto, quebra-ossos e britango). ©VCF

 

 

Da política aos memes e à literatura, os abutres estão na moda! Mas poderá a cultura pop tornar-se numa preocupação para a conservação destas aves?

 

Rui Rocha, deputado à Assembleia da República e Presidente da Iniciativa Liberal, ironizou recentemente na rede social X (antigo Twitter) que é “Hilariante ver abutres radicais afirmarem que o seu abutrismo político é diferente do abutrismo de sinal oposto”. Completou a sua analogia com uma referência ornitológica, listando as espécies de aves necrófagas que podem ser vistas no nosso país: “É como se as 4 espécies de abutres que há em Portugal - grifo, quebra-ossos, abutre-preto e britango - discutissem entre si o tamanho das asas ou a cor do bico.” Já uns dias antes, Rui Rocha associava os abutres à desorganização política, afirmando que os abutres se alimentam “de caos e desordem”.

 

 

 

 

A alusão à necrofagia como oportunismo político, financeiro ou social, não é recente, e das várias espécies de vida selvagem que se alimentam oportunisticamente quando ocorre uma morte – que representa uma imprevisível e momentânea disponibilidade de recursos – os abutres parecem ganhar a taça!

 

Em 2016, aquando da reestruturação do Banco Espírito Santo e a criação do Novo Banco, debateu-se largamente sobre os acionistas deste último estarem associados a “fundos abutres”, que poderiam expor o banco à especulação no setor da banca. A metáfora com abutres é também recorrentemente utilizada no contexto de práticas especulativas no setor imobiliário, em que potenciais investidores tentam alegadamente gerar lucros milionários sobre um mercado em crise e que gera desespero na população em geral.

 

A personificação dos abutres em entidades sombrias e mórbidas, com motivações predatórias e oportunistas, está enraizada na nossa cultura, sendo comum a sua associação a personagens ou ambientes descritos na música e na literatura. Vejam-se os abutres da premonição, de Salvador Sobral, que “entre sombras voltam” com “a bruma e a Lua sem pedir perdão”; os “abutres de deus”, de Bizarra Locomotiva, “falsos profetas” e “predadores cruéis”, ou, ainda, os “falsos líderes que se autointitulam como os donosdarazão” descritos em “A nossa visão”, dos Dealema.

 

Em grandes obras literárias, como por exemplo Levantado do Chão, de José Saramago, ou O Vento Assobiando nas Gruas, de Lídia Jorge, recentemente adaptado para o cinema, é frequente o retrato dos abutres como seres vigilantes, de olhar atento e predatório sobre os menos favorecidos, sempre em contexto de opressão ou degradação moral.

 

Os abutres figuram ainda em caricaturas, memes e outras expressões populares com intenção pejorativa. Um caso recente e muito comentado foi o da socialite Betty Grafstein que, em contexto de alegada violência doméstica, se terá referido ao marido, José Castelo Branco, como “um abutre”.

 

 

Abutres-pretos (e pegas-rabudas) em alimentação ©Bruno Berthemy/VCF

 

 

Se podemos aceitar uma certa liberdade artística criativa associada ao universo da necrofagia, devemos também estar conscientes do poder das palavras e da distorção de conceitos que a apropriação popular pode incutir. Os abutres prestam importantíssimos serviços dos ecossistemas, com impactos positivos na vida e saúde de todos nós. Embora a sua dieta possa parecer pouco atrativa, os abutres desempenham um papel crucial na natureza, pois reciclam carne em decomposição, ajudam a limpar o ambiente e funcionam como a “equipa de limpeza” dos ecossistemas. Os seus impactos positivos estendem-se à redução das emissões de carbono, que o seu eficiente sistema de “limpeza” nos garante (por comparação aos artificiais métodos de recolha, transporte e incineração de carcaças de gado), e à economia! Os serviços prestados pelos abutres, incluindo aqueles espirituais e de ecoturismo, somam muitos milhões de euros a nível global, a cada ano.

 

A associação dos abutres a sentimentos de falsidade e oportunismo moral não poderia estar mais arredada da realidade ecológica destas aves. Ao longo de milénios de evolução, os abutres têm-se mantido fiéis à sua missão ecológica, não são nem mentirosos, nem enganadores ou populistas. Apesar de toda a má fama, agem em pleno dia e às claras, ensinam a todo o ecossistema que há um caso de limpeza urgente a ser tratado, e são da máxima eficácia na otimização e reaproveitamento de recursos que sabiamente partilham entre si, e para bem de todas as comunidades em que se encontram – incluindo as humanas. Não existe caos nesta repartição de alimento, pelo contrário, a partilha é organizada, hierárquica, inclusiva e progressiva, estando ajustada às características, capacidades e necessidades das várias espécies.

 

No âmbito do projeto LIFE Aegypius Return, os parceiros Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural, encontram-se a realizar um estudo sobre a opinião que os criadores de gado têm sobre os abutres, analisando também as queixas que deram formalmente entrada nas autoridades e, ainda, perscrutando o tipo de comunicação que é feita nos órgãos de comunicação social sobre estas importantes aves. O objetivo é perceber até onde os mitos e as crenças, a maior parte das vezes infundados, podem representar um obstáculo à conservação destas aves, e, a partir daí, trabalhar uma “comunicação positiva” sobre os abutres, através de formações dirigidas e ações de sensibilização ambiental. Quiçá uma próxima geração cultural e política poderá reconhecer a este grupo taxonómico a sua sapiência, capacidade de renovação e generosidade, qual deusa Nekhbet. E mencionar abutres pela sua eficiência, organização e papel positivo no deve e haver do nosso planeta!

 

 

 

 

Nekhbet – deusa do Antigo Egito, frequentemente representada como um abutre fêmea, símbolo de proteção, realeza e maternidade. ©Eternal Space CC by SA 4.0

 

 

 

Sobre o projeto LIFE Aegypius Return 

 

 

O projeto LIFE Aegypius Return é cofinanciado pelo programa LIFE da União Europeia. O seu sucesso depende do envolvimento de todos os stakeholders relevantes, e da colaboração dos parceiros, a Vulture Conservation Foundation (VCF), beneficiário coordenador, e os parceiros locais Palombar – Conservação da Natureza e do Património Rural, Herdade da Contenda, Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, Liga para a Protecção da Natureza, Associação Transumância e Natureza, Fundación Naturaleza y Hombre, Guarda Nacional Republicana e Associação Nacional de Proprietários Rurais e Associação Nacional de Proprietários Rurais Gestão Cinegética e Biodiversidade.

 

 

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