Crónica de uma viagem pelo património natural e cultural de Sintra

Caía uma das típicas brumas de Sintra pelas 8 horas na estação de Portela de Sintra, quando se deu início a mais uma rota pela zona norte do Parque Natural de Sintra-Cascais e Penedo do Lexim – Mafra, no âmbito do Projeto Despertar para a Natureza.
A professora Cristina Raposo já com uma ampla experiência de organização de saídas de campo lá nos esperava para irmos à sua escola situada na Terrugem - o Agrupamento de Escolas Alto dos Moinhos. De lá partimos com 6 professores de diferentes disciplinas e 45 alunos do 7º ano de escolaridade, rumo à nossa primeira paragem na praia do Magoito.


No local, quando descemos do autocarro, o ruído constante das ondas embalava a nossa chegada. Aos nossos pés, estendia-se uma arriba quase vertical até ao mar. A maré encontrava-se cheia, ocultando ainda mais as pegadas de dinossauros nos calcários do Cretácico, que lá estão presentes, mas cada vez mais desgastadas pela ação do mar.


Avistávamos nas arribas a sul, pela praia da Aguda, uma sucessão de camadas quase horizontais de calcários argilosos cinzentos e margas formadas há muitos milhões de anos, quando o mar se encontrava muito mais acima do que o atual e ao longe, vislumbrava-se o promontório magno dos romanos e extremo ocidental do seu império – o Cabo da Roca.  


Caminhando para sul, em direção à praia deparámo-nos com a Paleoduna do Magoito. Aí, os sentidos ficavam cada vez mais despertos com o cheiro a iodo, trata-se de uma praia que apresenta uma grande biodiversidade e onde a zona intertidal constitui um verdadeiro laboratório natural.


Junto à duna, o professor destacado da LPN, Jorge Fernandes efetuou um enquadramento da região mencionando a necessidade e a importância de se conservar as dunas, nomeadamente a duna fóssil do Magoito. Esta duna corresponde a um estado de evolução de areia solta para arenito, um processo que leva milhões de anos, sendo contemporânea de uma regressão do mar com uma descida de aproximadamente de 100 metros. Identificaram-se dois sítios arqueológicos que permitiram a sua datação com base em instrumentos de sílex e de cerâmica encontrados no local.

 

 

Duna consolidada da praia do Magoito (arenito). A duna assenta sobre areias negras com restos de moluscos que produziram o comento carbonatado utilizado para aglutinar os grãos da formação eólica. Fotografia de Sara Guardado.

 

 

Na década de 50 do século passado, a arriba era talhada em duna consolidada. Na década de 80, a construção de uma escadaria de acesso à praia, destruiu parte da duna que é constituída por material incoerente, colocando-a em situação de desequilíbrio, do que resultou uma aceleração da erosão, com desprendimento de enormes lajes após alguns invernos chuvosos e a destruição do acesso. Presentemente, no interior da duna foi construído um café-restaurante, e as vertentes da duna foram revestidas com redes para evitar acidentes decorrentes do desprendimento de materiais soltos.


Destacava-se logo no início desta saída o modo disciplinado, motivação e interesse dos alunos que colocando variadas questões iam registando as suas observações e apontamentos nos seus cadernos de campo. Seguidamente, caminhando para norte, passando pelo forte de Santa Maria, edificado durante o tempo de D. João IV para reforçar o sistema defensivo da costa e seguindo pela arriba na antiga  plataforma de abrasão de São João das Lampa eram visíveis os aspetos da ação da erosão do litoral. A erosão é essencialmente resultante da ação das ondas nas arribas com famílias de descontinuidades, fraturas e desligamentos apresentando erosão diferencial resultando em queda de blocos por perda de sustentação.


 
A norte da praia do Magoito observavam-se falhas preenchidas por filões magmáticos e aspetos de disjunção esferoidal nas rochas magmáticas testemunhando a atividade magmática resultante do Complexo Vulcânico de Lisboa permitindo correlacionar as diversas etapas do ciclo Geológico.

 

 

Norte da praia do Magoito. Falha preenchida por um filão de basalto norte da praia do Magoito. Fotografia de Cristina Raposo.

 

 

A disjunção esferoidal ou descamação “em cascas de cebola” resulta da ação conjugada do alívio de pressão de rochas formadas em profundidade que se expandem, fraturando-se e da alteração química que provoca o aparecimento de camadas concêntricas semelhantes a escamas de cebola.


À medida que caminhávamos pela orla costeira os alunos tinham um papel ativo na sua aprendizagem e questionavam os pescadores sobre a sua pescaria… - “Então a pescaria hoje está boa? Que peixes costumam pescar por aqui?” Ah bem esta altura é a melhor”, disse ele. “Gosto mais pescar no Inverno, temos mares maiores e águas mais bonitas, pois no Verão temos a nortada e faz muito calor para andarmos a subir as falésias. Temos pescado por aqui alguns robalos e sargos.”

 

 

Norte da praia do Magoito.

 

 

Seguindo o rasto subtil dos artefactos e da história da ocupação humana de Sintra que está ligada à sua geodiversidade e biodiversidade partimos em direção do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas, não só para melhor se contextualizar com os aspetos curriculares das ciências naturais, mas também em integrá-los com o currículo da disciplina de História numa perspetiva conjunta de ciência, tecnologia, sociedade e ambiente.

 

 

Museu Arqueológico de S. Miguel de Odrinhas, junto às antigas ruínas romanas.

 

 

Junto às antigas ruínas romanas (note-se a presença de líquenes).

 

 

Líquenes nas ruínas romanas de S. Miguel de Odrinhas – Caloplaca sp..

 

 

O museu reúne um espólio composto maioritariamente por coleções de arqueologia provenientes quase na totalidade, das diversas estações arqueológicas existentes no concelho de Sintra. Chegados ao Museu de imediato fomos recebidos pelos orientadores do museu e divididos em dois grupos. Rica em paisagem multifacetada, a região de Sintra apresenta uma abundância assinalável em monumentos e vestígios arqueológicos de todas as épocas encontrando-se excelentemente representada neste Museu.


Atentos, os alunos inicialmente foram encaminhados para as cercanias do museu onde se encontram as ruínas romanas e depois para o seu interior através de uma visita guiada presenciando as exposições permanentes e temporárias. A presença e a ação dos líquenes nas rochas das ruínas romanas é um excelente exemplo de interação entre o sistema geosfera, biosfera e a ocupação humana. Os líquenes são associações simbióticas entre fungos e algas ou cianobactérias produzindo ácidos que degradam as rochas e tornando-se organismos pioneiros “abrindo caminho” para as plantas e formação do solo.  


Na basílica romana, um não especialista teria imensa dificuldade, pela especificidade do museu, em aprender sozinho sobre a análise histórica proposta pelos excelentes guias acerca das largas dezenas de monumentos epigráficos, tumulares e outros artefactos. Verificámos que a maior parte do espólio em pedra tem a sua origem na zona de Negrais – o calcário de Liós, rocha formada há cerca de 97 M.a durante o Período Cretácico e que apresenta grande abundância de fósseis, nomeadamente de bivalves construtores de bancos de recifes. Essa rocha é extraída nas pedreiras existentes na região e foi utilizada por exemplo para a construção do Palácio Nacional de Mafra sendo um indicador através da presença dos seus fósseis que a Península Ibérica estava localizada a latitudes mais baixas, mais próximas do Equador.

 

 

Basílica Romana – Museu Arqueológico S. Miguel de Odrinhas.

 

 

Monumento funerário feito de Calcário de Liós com conchas de rudistas radiolitídeos oriundo da região de Negrais.

 

 

Destacam-se a presença de três sarcófagos etruscos, os únicos existentes em Portugal, datados dos séculos IV e III a. C que foram adquiridos em Itália por Sir Francis Cook, então proprietário da Quinta de Monserrate evidenciando a paixão por antiguidades e obras de arte de povos antigos que dominou a Europa culta a partir do Renascimento até ao romantismo. Sintra serviu de musa inspiradora a várias gerações de escritores e artistas ligados à sensibilidade da época romântica.

 

 

Sarcófago etrusco de Arnth Vipinana, século IV a.C.

 

 

Numa sucessão cronológica bem estudada, na última sala encontram-se os testemunhos dos diversos locais e escavações realizadas da região de Sintra com destaque, entre outros, por exemplo para locais como o enigmático Alto da Vigia (nas imediações da praia das Maças) e dada a proximidade com a escola Alto dos Moinhos nas freguesias de S. João das Lapas-Terrugem das villae romanas de Casal dos Pianos e S. Miguel de Odrinhas e do sítio arqueológico do lapiás de Lameiras (13 km a SE da escola Alto dos Moinhos).


O sítio arqueológico de Lameiras  é revelador de extensa ocupação humana desde o Paleolítico Médio (há 30 000 anos) e de uma significativa ocupação humana no neolítico antigo revelando a existência de restos faunísticos diversos (mamíferos, peixes, moluscos) e a existência de animais domésticos como ovelha e cabras e o cultivo de cereais através da sua deteção em sementes diversas.


Realce já no fim da nossa visita à exposição, para a existência de um esqueleto, das 8 sepulturas datadas do séc. VIII d.C resultantes da necrópole do Campo de Lapiás da Granja dos Serrões, local, classificado como monumento natural e por onde iríamos passar nas suas proximidades rumo à outra paragem da nossa saída – o Penedo do Lexim.

 

 

Esqueleto resultante da escavação da necrópole da Granja dos Serrões situado junto das antigas estruturas habitacionais da antiga villa romana.

 

 

Para além das saídas guiadas do museu, saliente-se a sua oferta educativa, bem organizada, com orientadores muito bem documentados, que apresentam a capacidade de motivar, captar a atenção e curiosidade acerca do património cultural e arqueológico da região, pelo que se recomenda a sua visita para o conhecimento não só da presença romana, mas de toda a antiguidade sintrense.


Quando saímos da exposição no Museu já era hora do almoço e iniciámos o nosso piquenique nas imediações já com a luz do sol brilhante a aquecer-nos. Junto a um muro deparámo-nos espantados com um inesperado ”bloom” de pirilampos. Era uma surpresa para nós, para mais tudo indica que embora não existam estudos suficientes para avaliação em Portugal que as espécies estão em regressão a nível mundial.


Estes pequenos organismos conhecidos como os vaga lumes e que nos presenteiam com espetáculos de luzes à noite, comunicam através da bioluminescência. A luz que emitem deve-se a uma reação química baseada na combinação de um pigmento chamado luciferina com o oxigénio que oxida na presença de luciferase (enzima) produzindo energia luminosa.


As espécies de pirilampos a nível mundial têm vindo a diminuir devido à perda de habitat, à poluição luminosa e ao uso de pesticidas, estes últimos, porque têm impacto direto na disponibilidade alimentar destes insetos (caracóis e lesmas).


Toda a energia (para mais com verdadeiros banquetes que os alunos traziam na sua merendeira e que muito gentilmente ofereceram aos professores e ao professor destacado) estava reservada para a próxima paragem no Penedo do Lexim e para o percurso a realizar até à Aldeia da Mata Pequena.


Sítio classificado como património geológico (Geossítio), arqueológico – Imóvel de Interesse Público  e natural, o Penedo do Lexim registou diferentes fases de ocupação humana de diversos períodos cronológicos desde o Neolítico (4000 antes de Cristo) até à época romana.  


Funcionou como uma pedreira de exploração de basalto até 1977 altura em que foi desativada, o que não impediu a destruição de mais de ¼ do cabeço. No percurso pedestre efetuado até ao Penedo do Lexim rodeados pelas vinhas do conceituado vinho de Cheleiros, observávamos um rico coberto vegetal de espécies autóctones com imensos líquenes epífitos fruticulosos (indicadores de boa qualidade do ar). Destaque para algumas espécies que efetuam a transição entre o clima Atlântico e mediterrânico, como por exemplo, Zambujeiros – Olea europae var. sylvestris, sobreiros – Quercus suber , Carvalho Cerquinho – Quercus faginea,  Carrasco – Quercus coccifera, Aderno Bastardo - Rhamnus alaternos, Salsaparrilha - Smilax áspera, Trovisco - Daphne gnidium, entre outras espécies.
 Saliente-se termos encontrado tão cedo já em floração, espécies de orquídeas silvestres nomeadamente, a Orchis italica vulgarmente conhecida como orquídea homem nu ou orquídea italiana, e que é uma espécie de orquídea nativa do Mediterrâneo. Na região de Mafra face a se ter um clima um pouco mais frio a floração destas espécies costuma ser mais tardia em relação, por exemplo, à zona mais a sul de Lisboa ou Arrábida, o que poderá ser um indicador de um inverno mais quente.


Ao chegarmos ao Penedo que ocupa uma posição de destaque na região, junto aos prismas basálticos o professor destacado efetuou um enquadramento geológico da região. Mencionou-se que o local materializava uma antiga conduta vulcânica alimentando um aparelho vulcânico a partir de uma câmara magmática localizada em profundidade desde o Cretácico Superior. Os prismas poligonais (hexagonais) que formam as colunas desde tipo de disjunção formaram-se em consequência da contração das rochas durante o arrefecimento do magma.

 

 

 

Penedo Lexim. Fotografia de Cristina Raposo.

 

 

Salientou-se que as “ esculturas naturais observadas” da disjunção prismática obedece a diferentes condições específicas de formação, não se tratando por isso de um fenómeno frequente pelo que deverá ser preservado. No entanto, ao longo dos anos tem-se constatado de que o Penedo do Lexim tem vindo a ser gradualmente destruído. As causas são naturais devido à erosão mas também algum rasto de destruição é resultante da ação de humanos mais incautos e de vandalismo. Daí que ficasse o alerta para que os alunos não retirassem amostras do local bem como da necessidade para a proteção do património natural e cultural.


Após a visita ao Penedo do Lexim os alunos acompanhados dos seus professores tiveram ainda a oportunidade de efetuar uma visita à aldeia da Mata Pequena,  um pequeno povoado rural que reconstitui a vida saloia, com uma dúzia de habitações, onde ainda se vive em comunhão com a natureza e se respira pacatez e autenticidade.


Através do simbolismo do Penedo do Lexim, desde as profundezas do magma, até ao “dar vida” ao basalto, esculpindo a paisagem, formando os solos férteis, germinando a biodiversidade e inspirando a ocupação humana renovam-se os nossos elos para com a natureza.


Caminhar na natureza ou simplesmente desfrutando-a, cria a noção também de que a espécie humana é frágil perante o poder e complexidade do mundo natural, de que as nossas ações irrefletidas ou atentatórias para com a Natureza se refletem mais tarde, ou mais cedo na espécie humana. E esta mensagem ficou tão mais clara no preciso momento em que escrevemos estas alíneas no qual um “simples e pequeno” vírus sobressaltou e colocou em perigo todas as nossas vidas.


Caminhar na natureza, ou melhor dizendo, por uma natureza naturalizada, conduz a uma maior imersão na natureza. É uma aprendizagem ética como menciona V. S. Marques, que não só nos faz mais felizes, como também nos desperta para a noção de que fazemos parte de um todo adquirindo um sentimento de pertença.


É esse caminhar com prazer e boa disposição, de levantamento ético- ambiental, associado a uma saída de campo bem preparada e organizada pela professora Cristina Raposo e suas colegas que permite potenciar as aprendizagens decorrentes.


Articulando os saberes próprios das Ciências Naturais, integrando-os com conhecimentos da História e do ambiente, através de um ensino mais motivador, envolvente e consistente com o desenvolvimento do trabalho de campo permite assim alcançar-se o principal objetivo do Projeto Despertar para a Natureza

 

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